A Missão e Ministérios dos Cristãos Leigos e Leigas - Uma abordagem



Na Assembléia Geral de 1999, os Bispos do Brasil aprovaram documento com o título “Missão e ministério dos cristãos leigos e leigas”, publicado sob nº 62 na coleção “documentos da CNBB”.

Façamos uma análise deste texto a partir de suas origens.
Já há várias décadas que se vem sentindo a necessidade de reencontrar o papel do leigo na Igreja e no mundo. Basta lembrar o desenvolvimento marcante da chamada Ação Católica.

Os leigos mereceram a atenção do Concílio Vaticano II (Apostolicam actuositatem) e do Magistério de Paulo VI e João Paulo II (com destaque para a exortação apóstolica Christifideles laici, fruto do Sínodo dos Bispos de 1987).

Em agosto de 1997 a Santa Sé divulgou “Instrução acerca de algumas questões sobre a colaboração dos fiéis leigos no sagrado ministério dos sacerdotes”. Pôde-se observar uma recepção um tanto negativa deste documento assinado pelos responsáveis por seis Congregações e dois Conselhos da Cúria Romana. Ao que nos parece, tal reação é devida à linguagem dura com que o documento foi redigido e a referências pouco claras a fatos que lhe deram motivação. Isto levou – é ainda nossa opinião – a se ler no documento mais do que se quis com ele expressar (p. ex., a recomendação de adotar precauções quanto a celebrações presididas por leigos pode dar a impressão de que tais celebrações tenham sido vetadas).

Logo após a divulgação de mencionada Instrução foi proposto que a missão dos leigos fosse assumida como tema da 36ª Assembléia Geral da CNBB, em 1998.

Vale destacar desde já diferenças de enfoque fundamentais. Enquanto a Instrução se propunha discutir aspectos relacionados com a colaboração dos leigos no ministério dos sacerdotes ordenados, o tema apresentado à CNBB se referia à missão e aos ministérios específicos dos leigos. Naquele, a colaboração do leigo para com ministério que não é seu; neste, o papel próprio do leigo.

Tanto que, quanto à fundamentação teológica da missão e dos ministérios dos leigos, a Instrução e Documento 62 são concordes. São pontos comuns: o reconhecimento de que na Igreja se manifestam diversos ministérios e carismas; o apontamento da dignidade comum e da diversidade de funções dos diversos ministérios; a Igreja definida como Povo de Deus; a atuação da Igreja em dois âmbitos, o espiritual e o temporal; a participação de todos na Igreja tem como fundamento o batismo e a crisma; a índole secular da missão do leigo; a igualdade fundamental no sacerdócio comum.

Já quanto às orientações práticas, não encontramos convergência entre os dois textos, o que se compreende pelo fato de estarem se ocupando de questões diferentes, como se viu. Aliás, a diversidade de momento e de motivação leva ambos a uma diversa acentuação, o que, numa leitura apressada, pode parecer oposição. A nós, parece tratar-se de aspectos complementares, com necessidade de ora destacar um, ora o outro. É assim que encontramos expressões paralelas: protagonismo dos leigos x protagonismo dos sacerdotes; função insubstituível dos leigos x função insubstituível dos sacerdotes; o clero não assuma o que é próprio do leigo x o leigo não assuma o que é próprio do clero.

Pois bem. Na Assembléia de 1998 foi apresentado um anteprojeto sobre o qual não houve consenso. Alguns entendiam ser oportuna a aprovação de um texto com estatuto de documento da CNBB. Outros entendiam que até se podia tratar do tema, mas na condição de estudo da CNBB. Para outros, ainda, o tema não era oportuno, uma vez que tinha sido objeto de recentes sínodo e exortação apostólica. O texto de estudo preparado previamente também não foi do agrado geral.

A Assembléia avançava já com várias propostas de alteração no texto, mas sem um consenso. Surgiu, então, a proposta de que, no decorrer do ano, o tema fosse melhor estudado e retomado na 37ª Assembléia Geral, em 1999. A proposta foi aceita, tendo havido a publicação do texto “Missão e ministérios dos leigos e leigas cristãos” sob nº 77 na coleção “estudos da CNBB”.

É neste panorama que o tema foi reassumido na 37ª Assembléia.
No encarte nº 430 do boletim Notícias da CNBB, Dom Vital Wilderink, OC observava que “já se passaram mais de 50 anos desde que Pio XII, em 1946, proclamou: ‘os leigos são Igreja’. (…) Esta, embora hoje soe óbvia dentro da visão de Igreja depois do Vaticano II, continua uma novidade na prática pastoral. Grande parte dos próprios leigos não a percebem ainda como um desafio.” Não é de estranhar o difícil parto que trouxe à luz o doc. 62.

A elaboração do documento seguiu o método “ver, julgar, agir”. Os três momentos do método podem ser reconhecidos nos três títulos que formam o documento: I – Desafios e sinais dos tempos; II – A missão do Povo de Deus – Fundamentos teológicos; III – Comunidade em missão – Diretrizes para a evangelização.

É interessante um estudo comparativo entre os textos nº 77 da coleção estudos e nº 62 da coleção documentos.

O primeiro ponto que chama a atenção é o título, onde houve inversão não sem importância: a primitiva expressão “leigos e leigas cristãos” deu lugar a “cristãos leigos e leigas”, expressando o que seja a essência e o acidente.

A redação posterior também não conservou o subtítulo “O serviço à vida e à esperança”.

O texto de estudo (nº 77) foi praticamente todo aproveitado no texto do documento (nº 62). Pelo que apuramos, só foram totalmente excluídos os parágrafos 69 a 72 (tríplice dimensão do sacerdócio: palavra, culto, serviço; um capítulo sobre o ministério ordenado), 105 a 106 (comunidade evangelizadora, com conteúdo já trabalhado em outros pontos do texto). O restante do documento foi mantido, ou com a mesma redação ou com alterações. Houve bom número de acréscimos.

Quanto às alterações promovidas no texto.
Algumas não se constituem em modificação do conteúdo. São simples trocas de termos, inversões de ordem ou eliminação de expressões. “O povo a caminho” passa para “o povo itinerante” (nº 3), inclusão do número de paróquias existentes no Brasil (nº 37//39) .

Por vezes a alteração tem o único objetivo de atualizar o texto. Já se pode fazer referência ao documento Ecclesia in America e não mais aos “documentos preparatórios do recente Sínodo do Bispos para a América” (nº 54//59). A referência às DGAE de 1995-1998 é mudada para as DGAE de 1999-2002 (nº 160//187).

Outras alterações, sem modificar o sentido do texto, tornaram-no mais claro. É o caso da referência a diakonia, diálogos, kerygma e koinonia. A mera citação dos termos deu lugar a uma nota de rodapé mais ampla (nº 50//52).

Não se pode deixar de observar que algumas alterações, embora pequenas, são mais fortes. Na frase “a esperança, porém, não aliena os cristãos dos outros homens e mulheres” (nº 8), o termo aliena foi substituído por afasta. Aqui, parece-nos, já não se trata de simples substituição de uma palavra por um sinônimo, dado que os termos alienar e alienação têm forte significação política e sociológica. Por isso mesmo, pode-se ver a nova redação como empobrecimento do denso sentido original ou como medida para evitar conotações não pretendidas (sugerimos que se tenha preferido o empobrecimento do texto como meio de evitar interpretações díspares).

No nº 18 há um aprofundamento da análise da situação da juventude na sociedade atual.
Ainda neste sentido, veja-se como restou alterada a análise sobre motivações para mudança de religião. O texto “havendo um grande número de católicos, muitos deles sem adesão pessoal a Jesus Cristo e ligados apenas por laços fracos à comunidade eclesial, é natural que vários tenham mudado de religião” foi alterado para “a falta de uma adesão pessoal e viva a Jesus Cristo e de ligação maior com a comunidade eclesial coloca-se entre as causas que explicam o fato de muitos católicos terem mudado de religião” (nº 26//27).

O texto que destacava a atuação de leigos na sociedade sofreu acréscimo para recordar também a contribuição dos leigos na edificação da comunidade eclesial (nº 57//62).

Também nos parece sensível o abrandamento da crítica contida no texto “o Vaticano II superou a concepção de Igreja como ‘sociedade desigual’, que condensava e consagrava aquela antievangélica distância entre hierarquia e laicato, tão perniciosa para o testemunho cristão no mundo”, agora redigida assim: “o Vaticano II superou a concepção de Igreja como ‘sociedade desigual’, que favorecia aquela distância entre hierarquia e laicato, que o Novo Testamento não conhecia e que se revelou prejudicial para o testemunho cristão no mundo” (nº 64//69). Parece-nos mais adequada a avaliação do texto final se entendermos que se pretende reencontrar e valorizar o papel próprio do leigo, e não criar um clima de disputa clero/laicato ou de revanche contra o clericalismo.
Em item sem alteração de conteúdo, foi alterada a deno
minação de ministério confiado a leigos: de testemunhas qualificadas do sacramento do Matrimônio para Assistentes Leigos do Matrimônio (a mesma denominação foi incluída no nº 39).

O item que trata da pastoral do dízimo recebeu nova recomendação: prestar “contas à comunidade das entradas e das despesas” (nº 147//172).

Como se vê, em linhas gerais o conteúdo do estudo nº 77 foi conservado no documento nº 62, mesmo que com diversas alterações, algumas importantes.

As grandes diferenças entre os dois textos, no entanto, encontram-se nos acréscimos feitos no documento 62 em relação ao estudo 77. Destaquemos os principais.

Nos “Desafios econômicos, sociais e políticos” foi acrescentado um parágrafo para tratar da questão do meio ambiente (nº 20), para a qual toda a sociedade tem desenvolvido grande sensibilidade.

Foi desenvolvida uma análise sobre a relação entre a Igreja entendida como mistério e como povo de Deus (nº 60//65), indicando que a definição de Igreja como povo de Deus não é algo tão simples e imediato, exigindo aprofundamento.

A questão da tipologia dos ministérios, que era tratada em um único parágrafo (nº 83), foi sensivelmente desenvolvida, ocupando agora os números 87 a 93. Houve amplo estudo sobre os ministérios leigos.

Os números 96 a 103 constituem extenso acréscimo no qual se busca caracterizar o leigo e seu campo de atuação (o mundo é sua vocação primeira, mas não exclusiva, pois é chamado a cooperar também com o apostolado próprio da hierarquia).

O estudo sobre a relação entre hierarquia e laicato (nº 85//104) foi enriquecido com o acréscimo de três importantes notas de roda-pé. O mesmo ocorre com a recomendação de que se evitem o autoritarismo e mecanismos de exclusão (nº 98//117).

Foram, ainda, acrescentados os números 78 (unidade na diversidade), 119 (acolhimento de cristãos não católicos), 125 (pastoral urbana), 128 (serviço à pessoa e à sociedade), 129 (colaboração de cristãos de denominações diferentes no serviço à sociedade), 132 (participação e acompanhamento das atividades políticas), 134 (iniciativas comunitárias de solidariedade e proposta do projeto “paróquias irmãs”), 152 (apostolado individual e empenho pessoal de cada cristão), 154 (testemunho ecumênico), 179 (oração), 180 (espiritualidade não afasta da vida cotidiana), 192 (organização e objetivos do Conselho Nacional de Leigos; o nº 191 já acrescentara referência aos Conselhos de Leigos, não contida no primitivo nº 164). A relação destes acréscimos permite constatar alguns destaques: três deles estão relacionados com a questão ecumênica; o capítulo sobre “Serviço e participação na transformação da sociedade pelo bem dos pobres” sofreu quatro acréscimos; dois novos itens foram incluídos nos capítulos sobre “Anúncio do Evangelho” e “Espiritualidade do cristão” (aliás, há nada menos que 11 novos parágrafos nas diretrizes para a evangelização, ou seja, no agir, na parte prática). Isto parece sinalizar quais questões são objeto de maior preocupação ou têm sua importância ressaltada.

Houve, porém, um outro acréscimo que nos parece ser o coração do documento 62 ou, dito de outra forma, a perspectiva de leitura do documento. De fato, mesmo outras alterações e reorganizações do texto parecem ter sido promovidas para adequá-lo à questão ali suscitada.

Trata-se do acréscimo dos números 53 a 55 em capítulo intitulado “A evangelização nas diretrizes da Igreja no Brasil”.

A posição do acréscimo e sua redação deixam entrever que, em momentos anteriores, surgiu uma tensão entre duas aproximações do tema evangelização: a partir de suas quatro exigências fundamentais (serviço, diálogo, anúncio e testemunho de comunhão) e a partir das três funções pelas quais ela se realiza (profética, sacerdotal e real).

Nas DGAE 1995-1998 (doc. 54), no Projeto Rumo ao Novo Milênio (doc. 56) e nas DGAE 1999-2002 (doc. 61) prevaleceu a análise a partir das quatro exigências. Foi também a partir desta posição que foram traçadas orientações práticas. A mesma perspectiva orientara a elaboração do anteprojeto que deu origem ao estudo 77.

A tensão entre as duas perspectivas voltou a se fazer presente na fase de discussão do tema missão e ministérios dos leigos. Desta feita, a perspectiva das três funções pelas quais se realiza a evangelização foi assumida pelo documento. Mais do que o simples acréscimo de um item, foi algo que provocou a releitura do texto, motivando várias outras adaptações.

Em função desta nova perspectiva, o capítulo “Sacerdócio comum – Um sacerdócio existencial” do estudo 77 deu lugar aos capítulos “Participação na função profética”, “Participação na função sacerdotal” e “Participação na função real” do documento 62, implicando no acréscimo dos números 72 (profética) e 75-76 (real); os antigos números 67-68, enriquecidos, formaram os números 73-74 (sacerdotal).

Os extensos acréscimos dos números 87-93 e 96-103 contêm estudo sobre o estatuto do cristão leigo e o modo pelo qual se realizam sua missão e seus ministérios. Tal estudo se coloca em consonância com a perspectiva da tríplice função e é, praticamente, exigido por esta nova aproximação do tema. Ou seja, era preciso detalhar sob que fundamentos e por que meios o cristão leigo desempenha seus múnus de sacerdote, rei e profeta.

Importa observar que a inclusão desta perspectiva se dá na parte do documento identificada com o momento de “julgar” do método adotado na elaboração. Ou seja, tra-ta-se, realmente, de critério a ser considerado como chave de leitura do tema. É elemento de composição das lentes por meio das quais se deve enxergar a questão em estudo.

Esta nova perspectiva nos parece de uma importância ímpar e ainda não suficientemente reconhecida. Trata-se de uma questão antes apresentada sem que fosse explicitamente assumida e que, agora, ocupa posição de destaque. A reconfiguração do documento indica não se tratar de um grupo ter cedido para agradar a outro. Se acreditamos que o Espírito Santo conduz a Igreja, não seria o caso de nos perguntarmos o porquê de tal perspectiva ter sido assumida neste momento?
Proponho uma resposta: a tríplice função e o fato de todo cristão exercê-la está já presente no Concílio Vaticano II e no Código de Direito Canônico (para não lembrar da Carta aos Hebreus). Era, pois, algo já latente. No entanto, tínhamos mais dificuldades, por razões históricas e culturais, de reconhecer o exercício da tríplice função por leigos e leigas. Não era, então, o caso de se insistir no fato de leigos e leigas serem parte de um povo de sacerdotes, reis e profetas? Que implicações tal conceito pode ter na pastoral e na evangelização? Que pode significar, por exemplo, a função real, ou seja, de governo e pastoreio do Povo de Deus? Como ler, a partir desta ótica, por exemplo, o conteúdo dos números 102//122 e 163//190, que tratam dos conselhos de pastoral? Ganham eles uma nova dimensão, uma nova perspectiva? Que sentido prático isto tudo pode ter em nossas Paróquias e Dioceses?

A terceira parte do documento – diretrizes/orientações práticas/agir – manteve a estruturação com base nas quatro exigências da evangelização. Como já apontamos, porém, a inclusão da perspectiva da tríplice função favorece uma releitura das orientações. Pode-se observar nesta parte uma nítida separação entre as diretrizes para atuação do leigo na sociedade e na Igreja (a esta é dedicado mais especificamente o capítulo “Vivência e testemunho da comunhão eclesial”).
Na 21ª Assembléia das Igrejas do Regional Sul 1 da CNBB (Itaici, 22-24/10/1999), Dom Aloísio Lorscheider propôs um esquema que me parece ainda incipiente, mas que merece ser refletido e enriquecido: “Pois bem, o testemunho, o anúncio, o diálogo, não são outra coisa do que o exercício do múnus profético dos leigos; o serviço enquadra-se perfeitamente no múnus régio, dentro do domínio ordenado do criado e no múnus sacerdotal, enquanto ação oblativa e celebrativa (sacramento e vida ou sacramento e ação).”

Evidentemente, a parte final dos textos é bem diferente. Enquanto um apresenta proposta “Para continuar o diálogo”, o outro traz uma “Conclusão”.

Por fim, houve expressivo aumento no número de notas de roda-pé: de 149 para 262, isto é, um incremento de 75%. Isto poderia dar a impressão de enriquecimento do documento. Tal conclusão não é adequada. Houve, sim, a inclusão de notas de rico conteúdo, como as de números 43, 84, 148, 152, 153, 176, 179, 195, 215 e 254 (algumas como notas dos novos parágrafos adicionados ao texto). A grande maioria, porém, apenas levou para o roda-pé referências a textos bíblicos ou documentos que estavam incluídas nos respectivos parágrafos (o que significa ajuste de metodologia). Houve mesmo texto que fazia parte de parágrafo e que foi deslocado para nota de roda-pé, como a de nº 185, antes parte do parágrafo 85 do estudo 77.
Saliente-se que apresentamos uma abordagem do documento 62, que pode ser estudado a partir de vários outros enfoques. Optamos por este em razão de entendermos que o estudo comparativo com as origens do documento permite identificar alguns aspectos bastante interessantes. A simples exposição do documento – pensamos – seria de menor utilidade, pois o texto ou já foi lido ou está à disposição para leitura por aqueles que desejam conhecê-lo e saber de seu conteúdo. Esperamos, assim, ter trazido uma contribuição nova ao estudo, ainda que falhas possam ser apontadas em nossa aproximação do texto.

Reunião do Clero do Setor de Jaboticabal
Taquaritinga, 03 de novembro de 1999
Mário Lúcio Marchioni

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